31/10/10

Um artigo da Visão

Criancinhas
A criancinha quer Playstation. A gente dá.
A criancinha quer estrangular o gato. A gente deixa.
A criancinha berra porque não quer comer a sopa. A gente elimina-a da ementa e acaba tudo em
festim de chocolate.
A criancinha quer bife e batatas fritas. Hambúrgueres muitos. Pizzas, umas tantas. Coca-Colas, às litradas. A gente olha para o lado e ela incha.
A criancinha quer camisola adidas e ténis nike. A gente dá porque a criancinha tem tanto direito
como os colegas da escola e é perigoso ser diferente.
A criancinha quer ficar a ver televisão até tarde. A gente senta-a ao nosso lado no sofá e passa-lhe o comando.
A criancinha desata num berreiro no restaurante. A gente faz de conta e o berreiro continua.
Entretanto, a criancinha cresce. Faz-se projecto de homem ou mulher.
Desperta.
É então que a criancinha, já mais crescida, começa a pedir mesada, semanada, diária. E gasta
metade do orçamento familiar em saídas, roupa da moda, jantares e bares.
A criancinha já estuda. Às vezes passa de ano, outras nem por isso. Mas não se pode pressioná-la
porque ela já tem uma vida stressante, de convívio em convívio e de noitada em noitada.
A criancinha cresce a ver Morangos com Açúcar, cheia de pinta e tal, e torna-se mais exigente com os papás. Agora, já não lhe basta que eles estejam por perto. Convém que se comecem a chegar à frente na mota, no popó e numas férias à maneira.
A DEVIDA COMÉDIA
Miguel Carvalho
A criancinha, entregue aos seus desejos e sem referências, inicia o processo de independência
meramente informal. A rebeldia é de trazer por casa. Responde torto aos papás, põe a avó em
sentido, suja e não lava, come e não limpa, desarruma e não arruma, as tarefas domésticas são
«uma seca».
Um dia, na escola, o professor dá-lhe um berro, tenta em cinco minutos pôr nos eixos a criancinha que os papás abandonaram à sua sorte, mimo e umbiguismo. A criancinha, já crescidinha, fica traumatizada. Sente-se vítima de violência verbal e etc e tal.
Em casa, faz queixinhas, lamenta-se, chora. Os papás, arrepiados com a violência sobre as
criancinhas de que a televisão fala e na dúvida entre a conta de um eventual psiquiatra e o derreter do ordenado em folias de hipermercado, correm para a escola e espetam duas bofetadas bem dadas no professor «que não tem nada que se armar em paizinho, pois quem sabe do meu filho sou eu».
A criancinha cresce. Cresce e cresce. Aos 30 anos, ainda será criancinha, continuará a viver na
casa dos papás, a levar a gorda fatia do salário deles. Provavelmente, não terá um emprego. «Mas ao menos não anda para aí a fazer porcarias».
Não é este um fiel retrato da realidade dos bairros sociais, das escolas em zonas problemáticas,
das famílias no fio da navalha?
Pois não, bem sei. Estou apenas a antecipar-me. Um dia destes, vão ser os paizinhos a ir parar ao
hospital com um pontapé e um murro das criancinhas no olho esquerdo. E então teremos muitos
congressos e debates para nos entretermos.
Artigo publicado na revista VISÂO online.

6 comentários:

Henrique Marques disse...

Não penso que seja um problema dos bairros sociais. Acho até que é pior, quanto mais alta a classe dos paizinhos. Uma vez vi uma senhora no dentista a "aproveitar" a Sra. Dra. para explicar ao filho porque é que ele não podia beber sumos, como se esse trabalho não devesse ser dela.

Rosa Carioca disse...

Concordo, plenamente, com Henrique Marques.
E, cá para mim, o futuro já chegou...

Paulo Vicente disse...

Penso que no fundo a resposta para estes problemas é não nos esquecermos de que as nossas crianças também fazem asneiras.

Têm um pouco de nós dentro de nós, não têm só as nossas qualidades, têm também os nossos defeitos, por isso temos de pensar que podem ser tão estúpidas ou más como nós somos às vezes.

Às vezes fico espantado com a maneira como alguns pais deixam os filhos fazer o que querem, é como se tivessem esquecido que são eles que decidem o que o se vai comer ao jantar, se vai haver televisão à noite, se vai haver uma consola pelo Natal. O melhor a fazer parece ser simplesmente mandar o pequeno terrorista para a cama sem televisão e ponto final. Ele tem de perceber que se faz asneira isso tem consequências.

Mas também é certo que estou a ver isto "de fora", nunca tive filhos e não é provável que tenha um dia (infelizmente), talvez haja aqui algo que me esteja a escapar...

Olhos Dourados disse...

Pois é.

palavrasasolta disse...

Desculpa a demora em responder, Fatinha, mas só agora consegui um tempinho. Reli o teu post e os comentários feitos e aqui estou eu para dar também a minha opinião.
Acredito que de facto as crianças têm muito de nós, coisas boas e menos boas, como se costuma dizer, e mais importante ainda, têm a sua própria personalidade, que se vai moldando conforme a criança vai vivendo a própria vida.
Acredito também que aos pais - e não só pais, também professores, vizinhos, funcionários da escola e outros adultos no geral - devem tentar incutir na criança regras de bom comportamento para se integrar na sociedade.
Porque educar uma criança é tarefa de todos nós, apesar de hoje em dia ser mais complicado, parece-me.
E torna-se cada vez mais complicado quando os pais trabalham fora de casa e só estão com os filhos à noite, e para os compensar compram-lhes isto e aquilo e mais outras coisas ainda.
Bens materiais que só lhes permitem interiorizar que o companheirismo,o afecto, o "estar com" é subvalorizado, em contraponto com o que se tem. Quanto mais "tralha" melhor.
Nunca fui muito apologista de se dar tudo a ums criança, e então agora que tenho um pequeno, mais me convenço de que tenho razão. Está quase a fazer sete anos, mas desde que foi para o jardim de infância, que se fartou de pedir para lhe comprar uma consola, uma psp, aquelas coisas do costume. Recuso-me a fazê-lo, mas já cheguei a um acordo com ele: quando fizer 10 anos, e se tiver boas notas na escola, ofereço-lhe uma coisa dessas.
Por agora, o trabalho dele é aprender a ler, escrever, fazer contas, enfim... é aprender.
E quando chegamos a casa, nem sempre vou a correr fazer as tarefas domésticas. Sento-me com ele, dou-lhe o lanche, vejo se há recados e, muito importante, pergunto-lhe como foi o seu dia. E abraço-o. E beijo-o. E brinco com ele.
Isso sim, é mais importante. É ensinar-lhe mostrando que ele é o meu mundo, o mais importante para mim.

Ana disse...

Um texto cheio de verdade e muito preocupante. o pior é ter que conviver com essas crianças em adulto, não há pachorra!
beijinhos